O cavalo e a formiga não se davam. Nem se conheciam.
A formiga na sua vida, sempre enfiada no carreiro para cá e para lá, à cata
de provisões para abastecer a despensa, não prestava atenção ao que se passava
muito acima dela, lá no mundo dos bichos grandes.
Por sua vez, o cavalo, que tinha sido treinado a saltar
obstáculos, sempre ocupado nos seus exercícios desportivos, não fazia a mínima
ideia de que existissem formigas.
Mas os dois iam encontrar-se por artes mágicas, as
artes mágicas de que se fazem as histórias. Chama-se imaginação e garanto que
não custa nada. Experimentem.
Por onde havemos de começar? Pela formiga
trabalhadeira ou pelo cavalo desportista?
Tanto faz. O certo é que a vida deles vai cruzar-se,
em circunstâncias assaz estranhas, desagradáveis, direi mesmo trágicas. Mas não
nos precipitemos nem tão-pouco inquietemos quem nos está a acompanhar.
Um cavalo de um lado. Uma formiga de outro. Fazê-los
coincidir na mesma história é como desenhar um laçarote com duas fitas, vindas
de dois pontos extremos e simétricos. Espero que não me trema a mão no desenho
nem me embarace na laçada.
Tudo isto são rodeios de quem lhe custa a avançar. Mas
tem de ser.
O cavalo ia participar num concurso hípico,
acontecimento de responsabilidade, com muito público a assistir.
A formiga corria pelo meio das ervas, de patinhas
nervosas e antenas agitadas, sem que ninguém a visse.
Era a vez de o cavalo concorrer. Saltou um obstáculo,
saltou dois e com tal desenvoltura e elegância que ouviu aplausos.
O
cavaleiro que montava o cavalo julgou que eram para ele, mas quem os merecia
mais era o cavalo.
Nisto levanta-se um ventinho rente ao chão que
rodopiou, depois, no ar, soprado não se sabe de onde. Quando convém, chama-se o
vento e ele vem dar força às histórias que a gente não sabe como há-de
continuar...
Com o ventinho soltaram-se grãos de pó e areia. Até a
formiga, apanhada no remoinho voou,assarapantada,
pelos ares fora.
- Ai que me vou desta - exclamou a pobrezinha.
Não foi!
A viagem nas ondas do vento durou um instante, mas
para o coração da formiga foi um sufoco.
Logo
poisou e se agarrou a uma superfície lisa, escorregadia, húmida.
Na tribuna do público soltou-se um longo:
"Ahhhh!"- de desalento.
À beira do novo obstáculo o cavalo recusava-se a saltar.
Bem o fustigava nos flancos o cavaleiro. O cavalo fazia que sim com a cabeça,
mas fazia que não com o corpo e espumava, espumava de desespero.
Não menos desesperada estava a formiga, aquilo a que
ela se agarrara movia-se, resvalava,
fugia-lhe e ela não se tinha em pé...
Entretanto o cavalo esporeadopelo
cavaleiro tenta no último esforço vencer o obstáculo, mas as patas traseiras
não sobem o suficiente e o cavalo tropeça, cai, arrastando na queda quem o
montava.
Levanta-se em peso o público na tribuna: "Ficou
ferido? Magoado?" - claro que se referem ao cavaleiro.
Vá lá que não houve desgraça! Um entorse para o
cavaleiro, que sai do campo coxeando enquanto puxa as rédeas do cavalo, também
combalido, como se compreende.
A superfície trémula, viscosa, deslizante, a que a
formiga se segurara, começou a brotar água, como se ela estivesse em cima de
uma nascente, mas uma nascente de água salgada.
- Ai que me afogo - gritou a pobrezinha.
Quem a ouvia? Quem acode ao grito de uma formiga? Quem
ouve o sobressaltado coração de uma formiga em perigo?
Só nas histórias conseguimos. Nesta, por exemplo. E
condoemo-nos. E vamos salvá-la.
Humilhado com aquele fracasso, provocado por uma
impressão que sentira num dos olhos, o cavalo regressou à cavalariça.
Que não desanime. Vai ter mais oportunidades, ganhar
concursos, receber taças que o cavaleiro arrecadará para a sua colecção.
O
mais justo era que as dividisse com o cavalo. Mas, adiante.
Naquela ocasião o cavalo sentia-se deprimido. E chorou
uma lágrima. Uma, duas, três que bem as contei. Numa delas escorregou a
formiga, a nadar de bruços no meio da água salgada, até chegar a terra, isto é,
ao chão da cavalariça.
Sacudiu-se
do molhado e lá foi à sua vida de trabalhadora incansável. Nunca ela perceberia
o que lhe tinha acontecido. Nem ela nem o cavalo.
Só nós é que sabemos a história toda.